09 novembro, 2006

SANTO REMÉDIO

U nosso amô traduzia
Filicidade iafeção
Suprema glora cumdia
Vivi arcance da mão
Mas vêi um dia uciúme
I nosso amô sacabô
Deixano im tudu u prefume
Da sardade qui ficô...

Era uma segunda-feira na Pensão Coração de Mãe. Enquanto cantarolava “E o destino desfolhou”, de Carlos Galhardo, Maria Pão doce varria, caprichosa, o salão do cabaré. Parecia a beata Julia de Tiviza, amante de Frei Tito, varrendo “A Conceição”, para a missa do domingo. Zefa Tempêro, de balaio fechado, estava em Riacho das Almas cuidando da mãe doente. Cícero à mesa de sempre, lia, fumava o inseparável charuto e bebericava o indefectível Campari. Levantou-se em riste e com o livro numa mão e o mata-ratos na outra, pôs-se a declamar:

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

- Mai quis versu bunito meu fii, pareci fala de dotô! Nunca tinha iscuitado umas lordesa dessas...

- É “Delírio” minha mãe, de Olavo Bilac, O Príncipe dos Poetas!

- Pareci fala di prinspo mermo meu fii, pareci até uma reza...

Cicero disparou numa sonora gargalhada.

- Mas mãinha, isto de reza não tem é nada, este soneto é de pura putaria!

Maria Pão Doce caiu também na gargalhada.

- Tai veno tu? Até o Prinspi dus Pueta é chegado in putaria e raparigage...

Enquanto riam descontraídos, ouviram a porta abrir-se em pancada. Maria Pão Doce calou-se e Cícero continuou a rir impertinente. Passou da porta um negro, corpo de estivador, vestia caqui, trazia à cabeça um quepe surrado, no cinto um Smith & Wesson 38, cano longo, e um “rabo de galo” com cabo de chifre preto. Ele era Touro Preto, soldado de polícia, famoso na região por seu sadismo. Corriam pela feira, à boca miúda, terríveis histórias sobre seus feitos. Contam, entre muitas outras coisas, que depois de prender um de seus desafetos, ele comeu uma enorme tigela de coalhada, depois defecou dentro dela e disse pro pobre diabo: “Ô tu comi a minha merda ô eu dote umas mãozada”. Dizem que o coitado comeu tudo sem fazer nem careta. Ao vê-lo entrar, Cícero, ainda sorrindo, sentou-se e voltou à leitura do livro. Touro Preto dirigiu-se à Maria Pão Doce.

- Quêde Zefa, Maria? Mi chame já aquela rapariga, qui hoji ôto cum a gôta serena!

- Me adiscurpe Seu Tôro Preto, mai Zefa num ta não, ela foi lá pro “Reacho” acudi a mãe dela qui levô uma queda e tá cá inspinhela caída. Mai si tu tivé nu quêjo, tem pra mai de quinze mulé aqui prumode tu iscoiê.

- Mai, mai, mai, mai... Respeiti a puliça! Dêxe logo de fuleraje quenga veia! Mi mande trazê logo Zefa, qui só ela agüenta minha rola! Mande logo busca ela, qui hoje ôtô camulesta!!!

Cícero tirou os olhos do livro para observar a conversa, eles estavam de um verde profundo.

- Mai Seu Tôro Preto, dêxe di brabeza, aqui o sinhô sempe foi bem arrecebido. Nunca pagô nem um tustão, nem pá bebê, nem pá cumê, nem pá fudê. Arrespeite a casa, qui amenhã é dia di móvimentu i ninguém qué dirmantêlo.

- Mai, mai, mai, mai.... Tú ta a môca é derrota? Num miscuitô não? Mi chami já Zéfa ô a poica vai trocê u rabo pruaqui! E tu aí galego, qué qui tá mi oiano?

Cícero esboçou um sorriso de canto de boca, deu uma profunda tragada e voltou a ler.

- Ei galego! Pruque tu tá sirrino? Me disseru qui tu é mei mitidabrabo, báxa a crista qui preu rancá usóvu dum é cuma quem vai i vorta.

Cícero olhou bem nos olhos injetados de sangue do soldado de polícia e abriu um sorriso. Maria Pão Doce intercedeu.

- Dêxi dissu Seu Tôro Preto, num bula cum minino não, vá simbora, vá. amênhã Zefa ta de vorta.
- Cali-se a boca puta veia, qui a cunvéssa inda num chego nu chiquêro!

O brutamontes levantou a mão como que para estapeá-la. Porém, antes de descer o braço se viu caindo sentado no chão, vítima de veloz rabo-de-arraia. Diante dele estava Cícero, semblante sério, olhar compenetrado, limpando com um lenço vermelho o sangue de um navalha. Fez menção de sacar a arma, foi em vão, seus braços estavam paralisados. Olhou pro próprio peito, aviam duas manchas de sangue, seus trapézios havia sido cortados. Desesperado levantou-se, mas caiu novamente. Cícero não estava mais na sua frente, olhou para os próprios pés, seus tendões de aquiles tambem foram
navalhados. Touro Preto grita de terror e dor. Cícero calmamente interpela a mulher.

- Mãinha, me pegue uma bacia uma colher e um vidro de óleo de rícino, por favor.

Maria Pão Doce saiu do salão e andou em direção da cozinha. Touro Preto, embolando no chão chorava feito criança, pedindo clemência. Cícero pegou sua faca de ponta, abril a gandola do infeliz e riscou com letras bem desenhadas o nome Cícero em seu peito.

- Mateu não, galego, pulamôdideu, dexeu ir, dexeu ir... Me adiscurpa, me adiscurpa pu nossa sinhora, ô vomimbora de Caruaru, eu juro, pulo meu Padim Pade Ciço...

Maria Pão Doce retornou ao salão trazendo o purgante, uma bacia de flandres e uma colher de pau.

- Mãinha, dê o purgante pra esse valentão beber.

Maria Pão Doce escarneceu:

- Eita gôta, u negão vai siacabá pelos fundo!

Touro Perto rogou:
- Não, num fai isso cumigo não, pru nosso sinhô, fai isso não, dêxeu ir...

Maria Pão Doce, com uma das mãos prendeu o nariz de touro preto, ele sem conseguir respirar abriu a boca, com a outra ela derramou todo conteúdo do vidro por sua garganta. Depois, com a ajuda de Cícero, sentaram o policial aos prantos sobre a bacia. Depois de algum tempo ele foi acometido por uma fulminante desenteria. Evacuou até o recipiente quase transbordar. Cícero e Maria Pão Doce o sentaram no chão. Cícero, com voz calma, ordenou:

- Agora minha santa mãinha vai lhe alimentar. É pra comer tudinho viu?

Os olhos de Cícero voltaram ao seu azul quase mar e ele sem dizer palavra retornou à sua mesa, bebeu do seu Campari, acendeu um novo charuto e voltou a ler “O Príncipe dos Poetas”.

2 comentários:

Eliza Araújo disse...

não tive muito tempo pra ler tudo, mas adorei o começo. está muito cuidadoso esse texto. bem como a varrida de maria pão doce. você sabe que eu gosto de varridas caprichosas, você sabe o que eu quero ser quando eu me aposentar. (estou rindo)

Mirna Nóbrega disse...

eitha, que o menino escreve bem qui só...

abraços