31 outubro, 2005


TORRENTE

Insuportáveis são as águas que ela verte dos olhos. Intoleráveis são elas, por serem tão minhas. Incontroláveis desejos de vertê-las eu, de trocar a fonte delas pros secos olhos meus. Insustentáveis são as dores que a fazem sangrar transparente. Inconsoláveis. Maldito fruto do bendito ventre.

27 outubro, 2005




JOÃO DE NADA

No meio de um sonho troncho, veio ele e, sem compaixão, disparou: - você é João de Nada. Eu disse, Peraí! Tenho um nome, foi ela quem me deu. Respondeu, que nada! Tais aqui por acaso e teimosia. Por acaso meu e dela teimosia. Não valia mesmo nada. Nem a luz, nem a dor, nem a pena. Valia muito menos, que uma foda mal dada, uma camisinha furada, um aborto mal feito, uma mísera mamada, um registro direito, um batismo imperfeito, que uma fralda cagada. Vim aqui pra tomar, nessa magra noite de sono, o que tu não mereces ter; não mereces dormir, não mereces sonhar, não mereces acordar, não mereces viver, não mereces existir, muito menos ter nome. Dá ele pra cá! Pra que careces de substantivo que te diferencie de outro ser? Pra assinar isso aqui? Pra assinalar os erros dessa existência fracassada? Devolve o que não é teu! O que jogas sem pena na lama. Natimortos não têm herança nem direito de sonhar. Vai-te embora, escolhe a privada mais suja e te atira dentro. É bem lá que se sepulta abortos, sem direito a choro, velas ou cruz de indigência. É Lá que apodrecem Cicranos, Fulanos de Tal, Beltranos e Joões Ninguém.

25 outubro, 2005



OLHAR

Já fui inventor de segredos. Desses que param por horas, adivinhando o por detrás dos olhos alheios. Era só escolher um tronco, um banco, um batente, uma beira de muro sem vidro e parar. Via a vida passar com suas curvas, suas cores, sua polifonia e seus odores. Lia tudo ali: no livro embaixo do braço, no jeito de acender o cigarro, na maneira do cuspe estatelar-se no asfalto. Sabia todos os de onde e pra onde, os porquês e os serás. Era Deus, um menino brincando de bonequinho, ignorando os que me desejavam e desejando os que me ignoravam. Mas um dia, nem sei bem por qual motivo, parei de enxergar. E foi nesse exato momento, que os olhos do mundo começaram a me inventar.

ABORTO

O poema dói nas entranhas
Agarra-se pra não sair
Teme latrinas
Sacos de lixo
Luz
Olhos
Ouvidos
Línguas
Urubus
Vermes
E
Elogios fáceis
Desejava ficar nas sombras
Junto aos irmãos esquecidos
Mas cede as contrações
As tolas aspirações
E finalmente decai
Escorrega da mão
No meio de um papel branco
Lambuzado com sangue
Lagrima
Suor
Cachaça
E
Fumaça
Nasceu pra morte
Pro desassossego
Queria apenas esconder-se
Ser um epitáfio na lápide pobre do esquecimento.