09 novembro, 2006

SANTO REMÉDIO

U nosso amô traduzia
Filicidade iafeção
Suprema glora cumdia
Vivi arcance da mão
Mas vêi um dia uciúme
I nosso amô sacabô
Deixano im tudu u prefume
Da sardade qui ficô...

Era uma segunda-feira na Pensão Coração de Mãe. Enquanto cantarolava “E o destino desfolhou”, de Carlos Galhardo, Maria Pão doce varria, caprichosa, o salão do cabaré. Parecia a beata Julia de Tiviza, amante de Frei Tito, varrendo “A Conceição”, para a missa do domingo. Zefa Tempêro, de balaio fechado, estava em Riacho das Almas cuidando da mãe doente. Cícero à mesa de sempre, lia, fumava o inseparável charuto e bebericava o indefectível Campari. Levantou-se em riste e com o livro numa mão e o mata-ratos na outra, pôs-se a declamar:

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

- Mai quis versu bunito meu fii, pareci fala de dotô! Nunca tinha iscuitado umas lordesa dessas...

- É “Delírio” minha mãe, de Olavo Bilac, O Príncipe dos Poetas!

- Pareci fala di prinspo mermo meu fii, pareci até uma reza...

Cicero disparou numa sonora gargalhada.

- Mas mãinha, isto de reza não tem é nada, este soneto é de pura putaria!

Maria Pão Doce caiu também na gargalhada.

- Tai veno tu? Até o Prinspi dus Pueta é chegado in putaria e raparigage...

Enquanto riam descontraídos, ouviram a porta abrir-se em pancada. Maria Pão Doce calou-se e Cícero continuou a rir impertinente. Passou da porta um negro, corpo de estivador, vestia caqui, trazia à cabeça um quepe surrado, no cinto um Smith & Wesson 38, cano longo, e um “rabo de galo” com cabo de chifre preto. Ele era Touro Preto, soldado de polícia, famoso na região por seu sadismo. Corriam pela feira, à boca miúda, terríveis histórias sobre seus feitos. Contam, entre muitas outras coisas, que depois de prender um de seus desafetos, ele comeu uma enorme tigela de coalhada, depois defecou dentro dela e disse pro pobre diabo: “Ô tu comi a minha merda ô eu dote umas mãozada”. Dizem que o coitado comeu tudo sem fazer nem careta. Ao vê-lo entrar, Cícero, ainda sorrindo, sentou-se e voltou à leitura do livro. Touro Preto dirigiu-se à Maria Pão Doce.

- Quêde Zefa, Maria? Mi chame já aquela rapariga, qui hoji ôto cum a gôta serena!

- Me adiscurpe Seu Tôro Preto, mai Zefa num ta não, ela foi lá pro “Reacho” acudi a mãe dela qui levô uma queda e tá cá inspinhela caída. Mai si tu tivé nu quêjo, tem pra mai de quinze mulé aqui prumode tu iscoiê.

- Mai, mai, mai, mai... Respeiti a puliça! Dêxe logo de fuleraje quenga veia! Mi mande trazê logo Zefa, qui só ela agüenta minha rola! Mande logo busca ela, qui hoje ôtô camulesta!!!

Cícero tirou os olhos do livro para observar a conversa, eles estavam de um verde profundo.

- Mai Seu Tôro Preto, dêxe di brabeza, aqui o sinhô sempe foi bem arrecebido. Nunca pagô nem um tustão, nem pá bebê, nem pá cumê, nem pá fudê. Arrespeite a casa, qui amenhã é dia di móvimentu i ninguém qué dirmantêlo.

- Mai, mai, mai, mai.... Tú ta a môca é derrota? Num miscuitô não? Mi chami já Zéfa ô a poica vai trocê u rabo pruaqui! E tu aí galego, qué qui tá mi oiano?

Cícero esboçou um sorriso de canto de boca, deu uma profunda tragada e voltou a ler.

- Ei galego! Pruque tu tá sirrino? Me disseru qui tu é mei mitidabrabo, báxa a crista qui preu rancá usóvu dum é cuma quem vai i vorta.

Cícero olhou bem nos olhos injetados de sangue do soldado de polícia e abriu um sorriso. Maria Pão Doce intercedeu.

- Dêxi dissu Seu Tôro Preto, num bula cum minino não, vá simbora, vá. amênhã Zefa ta de vorta.
- Cali-se a boca puta veia, qui a cunvéssa inda num chego nu chiquêro!

O brutamontes levantou a mão como que para estapeá-la. Porém, antes de descer o braço se viu caindo sentado no chão, vítima de veloz rabo-de-arraia. Diante dele estava Cícero, semblante sério, olhar compenetrado, limpando com um lenço vermelho o sangue de um navalha. Fez menção de sacar a arma, foi em vão, seus braços estavam paralisados. Olhou pro próprio peito, aviam duas manchas de sangue, seus trapézios havia sido cortados. Desesperado levantou-se, mas caiu novamente. Cícero não estava mais na sua frente, olhou para os próprios pés, seus tendões de aquiles tambem foram
navalhados. Touro Preto grita de terror e dor. Cícero calmamente interpela a mulher.

- Mãinha, me pegue uma bacia uma colher e um vidro de óleo de rícino, por favor.

Maria Pão Doce saiu do salão e andou em direção da cozinha. Touro Preto, embolando no chão chorava feito criança, pedindo clemência. Cícero pegou sua faca de ponta, abril a gandola do infeliz e riscou com letras bem desenhadas o nome Cícero em seu peito.

- Mateu não, galego, pulamôdideu, dexeu ir, dexeu ir... Me adiscurpa, me adiscurpa pu nossa sinhora, ô vomimbora de Caruaru, eu juro, pulo meu Padim Pade Ciço...

Maria Pão Doce retornou ao salão trazendo o purgante, uma bacia de flandres e uma colher de pau.

- Mãinha, dê o purgante pra esse valentão beber.

Maria Pão Doce escarneceu:

- Eita gôta, u negão vai siacabá pelos fundo!

Touro Perto rogou:
- Não, num fai isso cumigo não, pru nosso sinhô, fai isso não, dêxeu ir...

Maria Pão Doce, com uma das mãos prendeu o nariz de touro preto, ele sem conseguir respirar abriu a boca, com a outra ela derramou todo conteúdo do vidro por sua garganta. Depois, com a ajuda de Cícero, sentaram o policial aos prantos sobre a bacia. Depois de algum tempo ele foi acometido por uma fulminante desenteria. Evacuou até o recipiente quase transbordar. Cícero e Maria Pão Doce o sentaram no chão. Cícero, com voz calma, ordenou:

- Agora minha santa mãinha vai lhe alimentar. É pra comer tudinho viu?

Os olhos de Cícero voltaram ao seu azul quase mar e ele sem dizer palavra retornou à sua mesa, bebeu do seu Campari, acendeu um novo charuto e voltou a ler “O Príncipe dos Poetas”.

27 agosto, 2006


BIX BEIDERBECKE

Sou panamenha e há tempos vivo com Bix. Escrevo e passo para a linha seguinte: ninguém irá acreditar; se acreditassem, seriam como eu e não conheço ninguém assim. Não exatamente eu, mas ao menos como eu. O que é uma vantagem porque dessa maneira posso escrever sem que me importe que leiam ou não, que ao final queime isto com o último fósforo do último cigarro, ou que o deixe abandonado na rua, ou que o dê para qualquer um, para que faça o que der na telha; tudo estará distante, tão distante de mim e de Bix.

Escrevo porque não há mais o que fazer e porque é certo ou parecerá certo para alguém que seja como eu. Existem, esbarro neles perto ou longe na vida. Nem todos vivem atados ao que lhes ensinaram. Veja, Rimbaud disse que se apaixonara por um porco e os professores dizem que era um grande poeta, o fazem provavelmente sem convicção, porque devem pensar assim para não parecerem idiotas. Porém, eu sei que era um grande poeta e Bix também o sabia, ainda que jamais tenha lido uma linha em francês e eu tinha que lhe traduzir Rimbaud, ao que ele colocava a mão na cabeça e ficava pensando, ou ia até o piano e começava a tocar essa coisa que agora se chama In a Mist e que era sua maneira de dizer que entendia a poesia francesa, porque entendia


bussy e como quase tudo lhe chegava pela música, essa era a única maneira de entender certas coisas, a vida, por exemplo, a ordem disso que chamo realidade e que ele entendia somente por dó maior ou fá sustenido, soprando docemente seu trompete ou indo ao piano para deixar nascer Lost in a fog, queimando os lábios com o cigarro esquecido pelas mãos, aranhas que teciam e teciam no teclado até que tudo acabava em um palavrão e num salto, eu sempre tinha por perto um tubo de creme para lhe curar os lábios; depois nos beijávamos sorrindo e ele voltava a xingar porque lhe doía e porque o trompete ia lhe doer ainda mais à noite, quando tivesse que tocar no Blue Room por oitenta dólares a apresentação.

“Vaocaralho”, como dizia tio Ramon, que juntava palavras e as fazia soar como uma chicotada na bunda; não que me custe escrever, porque como não me dou nenhum trabalho e esta máquina desliza, como o rum que já leva horas deslizando, tudo acontece em uma fita que vejo sozinha, não porque escreva às cegas, mas nem sequer olho para o papel, prefiro seguir meus dois dedos que saltam de cima pra baixo, a mão esquerda que corta a fita e passa para o outro tópico; tenho um abajur Tiffany que me enche o papel, o rosto e as mãos de manchas alaranjadas, verdes, azuis; escrever é como dançar música lenta com Bix no Phonix, ser parte de, ser parte de quê, ser parte disso que nos une a todos, sem que ninguém saiba que está junto e que somente esta noite estará com as outras partes, porque ainda que voltemos ao Phonix, já não será igual, como as ondas em Waikiki, uma atrás da outra após milhões de anos e nenhuma igual à outra; quem poderia dizer que uma onda contém o mesmo número de gotas de água que as outras ondas, ou o formato, ou a alegria, ou o desenho da crista, ou o jeito de quebrar nessa praia aonde Bix gostava de ficar dormindo e eu fumava para observá-lo, pequeno e feio, com aquele quê de alemão que havia grudado ao maldito sobrenome e em alguns gestos, herdados do pai ou dos tios; os Beiderbecke e suas árvores de Natal e os bolos perfumados da mãe de Bix, esses eruditos metidos até a alma em pleno Middle West, alemães com camisas de “cowboys”, falando americano e mais patriotas que o próprio Thomas Jefferson.

“Vaocaralho”, dizia tio Ramon, vaocaralho a Alemanha que nunca ouviu falar de Bix porque ele já era daqui; nunca entendi porque não trocava o sobrenome como fizeram outros músicos, Eddie Lang, por exemplo. Que eu me chamasse Macieira dava uma alegria enorme a Bix, lhe havia tirado do sério a coisa quando expliquei o que queria dizer, se contorcia em risos e depois me apertava contra ele e dizia Linda, Linda Macieira, Linda Macedo, Pé de Maçã, Deliciosa Torta de Maçã, no final, ficava com Torta de Maçã, e quase sempre depois disso começava a me comer porque nada lhe dava mais prazer que o doce de maçãs com cerveja, me chupava o nariz repetindo “Torta de Maça”, “Torta de Maça”, e eu lhe soprava em plena boca, e ele se jogava para trás maldizendo e me chamando de cretina, esculpindo a “Torta de Maça” que eu lhe havia deixado na boca, pobrezinho.

Conheci Bix na mesma época em que conheci Omar, na casa de meus paizinhos (escrevo paizinhos porque me faz sorrir, é cômico falar de paizinhos quando se pensa nesses escaravelhos peludos que me criaram entre freiras e me rachavam a chicotadas quando vinha aos domingos e esquecia um absorvente ao lado do vaso sanitário, asquerosa repugnante – mamãe –, é preciso ensinar o respeito a esta indecente – paizinho querido-), mas ao menos em casa havia a televisão e alguém que aos domingos poderia esperar sentada na sala, sabendo que Omar viria me ver; a família querida jogava dominó na sala de jantar e eu esperava sozinha a hora em que anunciavam Omar e eu ia escorregando na cadeira e esperava que, mais uma vez, Omar entrasse em primeiro plano e começasse a falar, a olhar-me, dissimulando um discurso qualquer, povo de Panamá, queridos amigos, qualquer coisa para aqueles que enchiam estádios e auditórios, porque o que ele queria era somente me olhar e tinha que dizer as piores baboseiras para que ninguém desse conta de que havia vindo à TV para observar-me, eu o esperava estirada no sofá, ele começava a falar, seus olhos de tigre verde me cravavam e eu lhe sorria, Omar, Omar, deixava ele me observar enquanto levantava a saia aos poucos, deixando-o ver-me, ia lhe mostrando tudo, pouco a pouco, sem pressa, porque Omar ia ficar meia hora dizendo baboseiras para os outros; mas eu havia inventado o código, a cada tantas palavras, escolhia as que Omar estava dizendo somente para mim enquanto me cravava seus olhos de tigre e lhe tremiam os músculos das têmporas, suas mãos que se erguiam como que para me alcançar, para fazer o que eu estava fazendo diante dele enquanto ele olhava e falava.

Pelo espelho era possível ver a porta da sala de jantar e saber em que momento teria que me endireitar, baixar a saia; Omar compreendia porque também podia ver pelo espelho da TV, às vezes meu pai, mais freqüentemente minha mãe, que vinha como que desconfiada; ou ambos, olhando e dizendo: esta menina, quem diria que ia se interessar tanto pela política, se me dissessem a irmã Filotea, mas não é bom nessa idade; “vaocaralho” dizia tio Ramon da sala de jantar, já largaram a partida novamente; com vocês não se pode jogar.

[Continua]



[O fragmento de conto acima, inacabado por Julio Cortázar, inédito em português, ganhou tradução de Cassiano Viana, que prepara uma biografia deste grande escritor argentino( e tudo isso afanei de http://www.paralelos.org)]

23 agosto, 2006


OLHO DE GATO

Podia ter sido deixado na porta da Funabem ou duma casa de família ou até mesmo numa lata de lixo. Mas não, deixaram o pobre menino, recém nascido bem na frente de um Cabaré. Era uma terça-feira, dia de parco movimento. Duas putas deram com ele, dentro de um balaio enfeitado de fitas, enrolado numa colcha de retalhos. Elas eram Maria Pão Doce, a mais antiga da casa, e Zefa Tempero, que era a mais feia, mas trepava e cozinhava como ninguém.

- Zefa, pia Zefa! benzatideu...qui mininim bunitim, parece um anjim Zefa, oi us oim dele zefa, é azuzim e os cabelin Zefa, benzatideu, galeguim quinem buneca de mio. Ramo cria o bichim Zefa, bora...

- Mulé, tu é doidja é? Cuma é qui noi vai criar esse bunequim aqui no brega? Eu inda arrumuãs trepada aqui alí, mai tu num arruma nem pu sá...

- Mai Zefa, ele parece cum aquele anjim queu tirei, u utimo tu lemba? Eu sonhei cum ele chorano, mi pidino pa fica...

- Tu qui sabi Maria, tu qui sabe, eu vomimbora pá drento, queru nem vê... Mai oia...O bichim surrindo, tão bunitim mulé, dá pena mermo de dêxa assim, nesse frii danado. Tá bom Maria, tá bom, ô vô ti ajuda a cria esse minino...

Batizaram o menino Cícero, mas todos o chamavam de Ciço-Gato, graças aos olhos que mudavam de azuis pra verdes, dependendo do clima e do humor. Com Maria Pão Doce aprendeu a amar e a cantar; com Zefa Tempero aprendeu as artes da trepada, com os clientes aprendeu a ler, escrever, fumar, beber e a jogar cartas e capoeira. Aos 13 já era malandro feito, ostentando terno de linho branco, sandálias de rabicho bicolores e um coração tatuado no peito com os dizeres: “Amor só de Mãe”. Escrevia poesia, fumava charutos baianos e só bebia Campari, por gostar da cor e do gosto meio amargoso na boca. Aos 18 era amado por todas e temido por todos, nunca se embebedava ou perdia no jogo. Punia “xexêros” e gigolôs violentos riscando seu nome no peito deles com a ponta de uma faca peixeira.

A Rua Almirante Barroso, Zona do Baixo Meretrício de Caruaru, fervilhava naquela noite de sábado. Em todos os bordeis a fauna de boêmios e a flora de meretrizes nunca fora tão rica. Maria Pão Doce e Zefa Tempero, graças à sorte do filho, tinham agora seu próprio bordel. Ao qual, Cícero dera o nome de Pensão Coração de Mãe em homenagem as duas. E lá estava ele, sentado à mesa de sempre, rodeado pelas mais jovens da casa, tragando seu charuto, bebericando seu Campari, recitando poeminhas que acabara de escrever, quando entrou no recinto, meio aos tombos, um rapaz esguio, aparentando 18 anos, de sorriso sarcástico e olhar ferino. Vestia calças verdes, sapatos brancos e uma camisa vermelha aberta até quase o umbigo. Ainda cambaleante, passou um tempo observando o movimento da casa. Vez por outra passava um pente azul nos cabelos negros, untados com óleo de coco. Num ímpeto andou até o balcão, onde estava Maria Pão Doce servindo beberagens.


- Sô todasordi meu fio, vai querê bêbê uque? noi tem Pitu, cêuveja, cunhaqui de alcatrão, dreia, jurubeba, campari, uisqui...

Ele apontou para a garrafa de aguardente na prateleira. A velha prostituta aposentada pegou a Pitu de rolha e um copo americano, antes de terminar de enchê-lo foi surpreendida pelo rapaz que tomou o vasilhame de sua mão e bebeu, quase de um gole só, meio litro da bebida e depois gritou zombeteiramente:

- Cumigu num tem pirreps!

Maria Pão Doce dá uma gargalhada e diz:

- Eita sede da gota serena! Bebi mai digava meu fii, sinão a rola hoje num assobe nem pru cem e uma cocada!!! RARARARARARARA....

De sua mesa, Cícero observava tudo com atenção. Uma das garotas, Nilza Beiço de Sapoti, era Paraibana, de Campina Grande, e havia reconhecido o sujeito.


- Credincrui! valei-me nossa sinhora! É Agápio da Lagoa dos Canáro, o malfazejo mai instinto ruim da Serra da Burburema! Aí meu Frei Daminhão, hoje vai te disgracêra pruaqui, Ciço! Pulamôdedeu esse homi é o cão, Ciço! Us povo lá di Campina dii que certa feita ele entrô num cabaré cua veia e lascô ela no chão de rastêra pru cima da fia morta, pegô nos grão dum caba até ele si ajueiá e dizê cumigu num tem pirreps, deu im 8 sordado de puliça armado, matô um cabo e um cumiçaru. Depoi deu uma navaiada na lâmpida e se escafedeusse pela janela sem ninguém nem vê...

Aterrorizada, Nilza Beiço de Sapoti ainda segurava forte o braço de Cícero que continuva impassível. Ela observava que os olhos dele, que antes eram azuis, quase infantis, estavam verdes e profundos. Ele a cumprimentou com um meneio de cabeça, levantou-se e andou suavemente em direção do balcão.

Agápio, injuriado com a audácia de Maria Pão Doce, bebeu em mais um gole a outra “meiota” de Pitu e gritou mais uma vez:

- Cumigu num tem pirreps!

Maria Pão Doce mais uma vez escarneceu:

- Eita Mulesta! RARARARARARARARARA. O franguim de macumba ficô
foi brabo...

Os olhos de Agápio semi-serram-se e se injetam de sangue. Tal qual um corisco, ele quebrou a garrafa no balcão. Maria Pão Doce arregalou os olhos e congelou de medo. Agápio gritou novamente antes de deferir o golpe:

- Cumigo num tem pirreps!

Quando estava com o gargalo da garrafa a milímetros da garganta da mulher, Agápio sentiu um brusco repuxo em seu braço e virou-se rapidamente, já com a navalha aberta na outra mão. O salão do lugar estava vazio, todas as pessoas estavam recostadas nas paredes, exceto Cícero que estava bem diante dele com um sorriso inocente nos lábios e as mãos enfiadas nos bolsos do paletó. Olharam-se nos olhos por um tempo que pareceu incomensurável. Agápio, sem deixar de fitar o adversário, começou a gingar. Pela impressão de todos a bebedeira de Agápio curou-se automaticamente. Ele sutilmente descalçou-se, baixou a mão esquerda até o pé direito, sem tirar os olhos de Cícero, e afixou a navalha entre dedos. Executou uma meia-lua visando a garganta do oponente que se esquivou com facilidade sem tirar as mão dos bolsos. Logo em seguida emendou um martelo alagoano fúrioso.

TEBEI!

Depois do som da queda, um silencio estranho se fez e os presentes viram Cícero sentado sobre o abdome de Agápio, que gritava feito um torturado:

- NÃO! NÃO!!! NÃÃÃAAAAAAAAAAAAOOOOOOOO!!!

Cíço-Gato levantou, seus olhos estavam azuis, voltou tranqüilamente para mesa da qual viera, acendeu um charuto, bebeu do seu Campari, deu um beijo de língua em Nilza Beiço de Sapoti e sentou-se.

Quem teve coragem de se aproximar do malfazejo derrotado, que chorava feito um menino, pôde ver claramente, escrito em letras sangrentas: Com Ciço tu tens perhaps.

EPÍLOGO

Dizem que depois desse episódio nunca mais se soube do paradeiro de Agápio, O Terror da Lagoa dos Canários.

[Sob inspiração do conto A Cantoria que nunca foi ouvida, em Zé Limeira o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo(imagem de http://www.sxc.hu)]

21 agosto, 2006


CABIDELA

Quando o sangue ferve, ventas abrem-se em bueiro pro azedo adentrar. Olhos esbugalham, pupilas dilatam, braços retesam, mãos agarram, bocas salivam, beiços incham, peitos arfam, mamilos intumescem, barrigas ondulam. O pau enrijece e ela sangra. Olhos semi-serram, pupilas retraem-se, braços rejeitam, mãos soltam, bocas engolem, beiços ressecam, peitos congelam, mamilos entristecem, barrigas empurram. O pau amolece e ela chora. Quando o sangue verte, fendas abrem-se por inteiro pro medo frutificar.

[imagem extraida de http://www.sxc.hu]

10 agosto, 2006


PRONTO PRO ABATE

Entre um berro e outro, de bode ou dor, uma estocada surda, uma lapada seca, uma vontade doída de correr mundo, de morrer cedo, de tirar sossego e um medo imundo de ficar doido.

[A gravura peguei de um tal de Samuel Casal(http://www.samuelcasal.com)]

24 maio, 2006




QUARTO DA BAGUNÇA

Era como chamavam aquele criatório de ácaros. Caixas cheias de esquecimento, mofo, objetos amputados espalhados de modo premeditadamente desorganizado. No recôndito mais profundo um cesto, desses de roupa suja, entupido de brinquedos. Da porta entreaberta Edinho espiava curioso, fazia tempo que queria estar só. Fingiu até um mal-estar para não ter que ir às compras. Agora estava ali, livre, com um sorriso triunfante nos lábios e uma ereção estufando seu calção. Ele entra e acende a luz, tira a roupa, senta do lado de uma pilha de revistas, apanha uma Ele&Ela com a foto de Xuxa estampando a capa e passa as páginas até onde lhe interessa. Olhando para ela, se masturba desajeitadamente, passa mais páginas, acelera o movimento e de repente pára. Uma idéia o assalta, ele vai até o cesto e o vira, despejando todo seu conteúdo. Do meio da bagunça, apanha uma boneca da Xuxa do tamanho de uma menina e apressado arranca suas roupas, coloca-a de quatro, encaixa seu minúsculo membro entre as pernas de plástico e inicia um frenético vai e vem.

Dª das Dores entra em casa com uma galinha viva debaixo do braço e gritando pelo filho.
- Edinho, tá melhor meu filho? Se tiver venha simbora logo ajudar seu pai descarregar a feira, venha... Edinho!!! Cadê esse menino que não responde?
Maria da Graça entra logo depois, com uma sacola cheia de guloseimas na mão.
- Gracinha, vá lá ver se seu irmão ta melhor, vá!
- Ai mainha, deixe eu guardar minhas coisas...
- Vá agora menina!
-Tá bom eu vou, tá bom...
A adolescente vai até o quarto do menino e chegando lá encontra a cama vazia, chama por ele e não obtém resposta. Volta pra cozinha e fala pra mãe que não o encontrou.
- Mas num é possível, o que é que esse menino ta aprontando? Vai procurar ele Gracinha, ele deve estar escondido por aí aprontando alguma traquinagem.
- Mas mainha...
- Mas mainha nada! Vá agora mesmo, antes que teu pai entre. Tu sabe como ele fica quando Edson Filho apronta...
A garota sai emburrada procurando-o pela casa inteira sem sucesso, então sai pela porta do quintal e vê a porta do "quarto da bagunça” escancarada. Ela vai até lá e quando entra vê, no fundo do cômodo, o irmão caído de bruços em cima de uma poça de sangue, cravada nas costas dele tem a cabeça de um “Boneco do Fofão” e do lado, intacta e sorridente, sua velha “Boneca da Xuxa”.

Ps. A arte da qual eu me apropriei indebtamente é de Flávio Albino, do site http://www.platinumfmd.com.br/.

15 maio, 2006

XÊXU ou Uma Parábola Sócio-Político-Corporativista Brasileira

Seq.1 / Puteiro / Int-Noite

Aderbal, trazendo Edileuza agarrada a seu cotoco de braço, passa pela cortina de plástico cor-de-rosa do pequeno cubículo, cuja mobília não passa de uma cama de alvenaria, um colchão de palha coberto de chita, um garrafão de vinho cheio d’água e uma bacia de alumínio. Ele fica parado, em pé na porta, dando ordens a pobre rapariga.

ADERBAL
Ei muié, tiresses mulambo véi,
se escancha ali na cama e abre
as perna, coração.

Com a mão que ainda possui, Aderbal tira do bolso uma camisinha, rasga a embalagem com o único canino que lhe sobrou, e com destreza veste-a no antebraço sem mão.

EDILEUZA
Mai Báu, cum cotoco dinovo não,
puramô di Deu! Assim tu mim lasca homi!
Assim é mai caro...

Aderbal se aproxima de Edileuza com olhar ditatorial e um sorriso torto nos lábios emoldurados por um fino bigode. Ele agita ameaçadoramente o braço da mão amputada.

ADERBAL
Mai! Agora fudeu mermo, rapariga
quereno adicioná di insalubidade!
Poi eu, cum essa mão só, cunsigo
lombar é um saco de cimento prucima
dum caminhão.Só pu casa disso,
vôqueré butá é no lordin,
no zé de broquinha, podísivirano!

Edileuza olha maliciosamente para Aderbal e vai tirando sensual a velha calcinha de náilon verde-limão.

EDILEUZA
Ai, bauzim...Num fala assim comiderretu toda...
Vemcá vem bauzim... mai vai digavazim viu?
Queu faço mai barato, aí...eu vô é fazê digraça.
AlZIRA, FECHEI O BALAI! Trai uma talagada de
banha de poico aqui pa eu, trai...

ALZIRA(Gritando)
Hahahahahahhahahahahahahahahhahahahahahahaha
Eita mulesta, já tô veno qui amanhã
o moi dipogloi vai cume no centru!

CORTA PARA:

30 março, 2006


BONNIE & CLYDE

Somos cumplices, mocinha! Faz tempo que estamos tramando, premeditando o assassinato da Saudade. Já escolhemos a arma do crime e vamos matar a vadia com requintes de docilidade. Enterraremos seu corpo esquartejado ao longo da rodovia, um pedaço em cada cidade. Quando não sobrar um só traço da malvada, nos entregaremos, confessaremos tudo sob ternura, assinaremos a confissão, ouviremos do juiz a nossa merecida sentença e cumpriremos em regime domiciliar, nossa plena e perpetua felicidade.

27 março, 2006



O AFOGADO

Acordei sentindo-me, coisa que eu já tinha esquecido como é que se fazia. Estava úmida, com a calcinha velha de estimação encharcada, tanto que lambuzei de sentimento cada dobra de lençol da cama vazia. Juro que tentei acordá-lo do jeito que ele queria, engolindo cada centímetro de tudo que nele jazia. Mas tudo ainda estava lá, flácido, dormente, caído, enrugado, roto, inútil. Fui obrigada, juro! Tive que cobrar minha parte. Tentou submergir, água já no pescoço, tentei traze-lo, por tudo que é mais sagrado, pelos seus cabelos, mas quase me leva junto, quase me leva junto, quase me esvazia, quase.

*Depois de tanto tempo roncando, lá vai mais um do livro.

23 janeiro, 2006




"Todos os homens, de todos os tempos, e ainda os de hoje, dividem-se entre escravos e livres, porque quem não dispõe de dois terços do proprio dia é um escravo, não importa o que seja de resto..."

[Friedrich Nietzsche]

11 janeiro, 2006


DE VISTO DE ENTRADA:
"um exército de veados liderados por um leão é muito mais temível do que um exercito de leões liderado por um veado".
[Não sei de quem é]

Ps. Do blog www.cemgrauscelcius.blogspot.com
DE O MATRIMÔNIO DO CÉU E DO INFERNO:
No tempo de semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta.
Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A Prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
O verme perdoa o arado que o corta.
Imerge no rio aquele que a água ama.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê.
Aquele cuja face não fulgura jamais será uma estrela.
A Eternidade anda enamorada dos frutos do tempo.
À laboriosa abelha não sobra tempo para tristezas.
As horas de insensatez, mede-as o relógio; as de sabedoria, porém, não há relógio que as meça.
Todo alimento sadio se colhe sem rede e sem laço.
Toma número, peso & medida em ano de míngua.
Ave alguma se eleva a grande altura, se se eleva com suas próprias alas.
Um cadáver não revida agravos.
O ato mais alto é até outro elevar-te.
Se persistisse em sua tolice, o tolo sábio se tornaria.
A tolice é o manto da malandrice.
O manto do orgulho, a vergonha.
Prisões se constróem com pedras da Lei; Bordéis, com tijolos da Religião.
A vanglória do pavão é a glória de Deus.
O cabritismo do bode é a bondade de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.
O rugir de leões, o uivar de lobos, o furor do mar em procela e a espada destruidora são fragmentos de eternidade, demasiado grandes para o olho humano.
A raposa culpa o ardil, não a si mesma.
Júbilo fecunda. Tristeza engendra.
Vista o homem a pele do leão, a mulher, o velo da ovelha.
O pássaro um ninho, a aranha uma teia, o homem amizade.
O tolo, egoísta e risonho, & o tolo, sisudo e tristonho, serão ambos julgados sábios, para que sejam exemplo.
O que agora se prova outrora foi imaginário.
O rato, o camundongo, a raposa e o coelho espreitam as raízes; o leão, o tigre, o cavalo e o elefante espreitam os frutos.
A cisterna contém: a fonte transborda.
Uma só idéia impregna a imensidão.
Dizei sempre o que pensas e o vil te evitará.
Tudo em que se pode crer é imagem da verdade.
Jamais uma águia perdeu tanto tempo como quando se dispôs a aprender com a gralha.
A raposa provê a si mesma, mas Deus provê ao leão.
De manhã, pensa, Ao meio-dia, age. Ao entardecer, come. De noite, dorme.
Quem consentiu que dele te aproveitasses, este te conhece.
Assim como o arado segue as palavras, Deus recompensa as preces.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Da água estagnada espera veneno.
Jamais saberás o que é suficiente, se não souberes o que é mais que suficiente.
Ouve a crítica do tolo! É um direito régio!
Os olhos de fogo, as narinas de ar, a boca de água, a barba de terra.
o fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira jamais pergunta à faia como crescer; nem o leão ao cavalo como apanhar sua presa.
Quem reconhecido recebe, abundante colheita obtém.
Se outros não fossem tolos, seríamos nós.
A alma de doce deleite jamais será maculada.
Quando vês uma Águia, vês uma parcela do Gênio; ergue a cabeça!
Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para pôr seus ovos, o sacerdote lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.
Criar uma pequena flor é labor de séculos.
Maldição tenciona: Benção relaxa.
O melhor vinho é o mais velho, a melhor água, a mais nova.
Orações não aram! Louvores não colhem!
Júbilos não riem! Tristezas não choram!
A cabeça, Sublime; o coração, Paixão; os genitais, Beleza; mãos e pés, Proporção.
Como o ar para o pássaro, ou o mar para o peixe, assim o desprezo para o desprezível.
O corvo queria tudo negro; tudo branco, a coruja.
Exuberância é Beleza.
Se seguisse os conselhos da raposa, o leão seria astuto.
O Progresso constrói caminhos retos; mas caminhos tortuosos sem Progresso são caminhos de Gênio.
Melhor matar um bebê em seu berço que acalentar desejos irrealizáveis.
Onde ausente o homem, estéril a natureza.
A verdade jamais será dita de modo compreensível, sem que nela se creia.
Suficiente! ou Demasiado.
*
Os Poetas antigos animaram todos os objetos sensíveis com Deuses e Gênios, nomeando-os e adornando-os com os atributos de bosques, rios, montanhas, lagos, cidades, nações e tudo quanto seus amplos e numerosos sentidos permitiam perceber.
E estudaram, em particular, o caráter de cada cidade e país, identificando-os segundo sua deidade mental;
Até que se estabeleceu um sistema, do qual alguns se favoreceram, & escravizaram o vulgo com o intento de concretizar ou abstrair as deidades mentais a partir de seus objetos: assim começou o Sacerdócio;
Pela escolha de formas de culto das narrativas poéticas.
E proclamaram, por fim, que os Deuses haviam ordenado tais coisas.
Desse modo, os homens esqueceram que todas as deidades residem no coração humano.
* * *
[William Blake]
Ps. Da tradução de José Antônio Arantes. São Paulo, Iluminuras, 1987. A ilustração é da Capa do Livro "The Marriage of heaven and Hell, feita pelo próprio William Blake

06 janeiro, 2006



PRETUME

O preto das minhas rimas, desrimadas pela Bic, é bem mais preto que meus pulmões cheios de fumaça Derby, é bem mais preto que as lentes do meu Spy comprado do Paraguai, é bem mais preto que os meus olhos vidrados na preta que acaba de passar. Com olhos tão pretos como a cabeça do Olho que acaba de apagar.

Ps. Mais uma das "Imexperiências Poéticas".

04 janeiro, 2006



O DUPLO

- Temos, então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido amigo?

- Quem te disse ?

- Laura.
Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:

- Laura... Laura faz mal em andar contando essa história por aí.

- Que tem?

- Ora! Que tem... Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas.
Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário, não freqüento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais "termos" não dou um passo - nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí ficarei até morrer.

Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que freqüenta.
O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.

- Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos ai estão: produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestam-se visível, sensivelmente.

Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor - Mistério.
Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mundo, há alguma coisa que... ninguém sabe o que é.

A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade...?

- Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais angustiosos da minha vida.
Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges sobre coisas da vida.
O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais.

O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se esparralham.

O bonde partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como deve acontecer com os aviadores que vêem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes. Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal - a mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi...!

- Viste...?

- A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! como refletido em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má sombra.

Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo:
"Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos.

Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa".

Que angústia, meu amigo ! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d'alma que me houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado.

Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim.

Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de pé.

A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra quadrada de ulano com entono de desafio.

Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro "eu", não o vi mais.

Teria descido? Não ! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar, debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.
E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento.

Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo.

E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: '~ Quem era o morto?" E logo lhe foi respondido:

- É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?

- Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.
[Coelho Neto]
Ps. A imagem...ah!... vocês já sabem! Eu pirateei lá do Getty Images.

03 janeiro, 2006




"A arte de não ler é muito importante. Consiste em não sentir interesse algum por aquilo que está a atrair a atenção do público numa determinada altura. Quando um panfleto político ou eclesiástico, um romance ou um poema estão a causar grande sensação, não devemos esquecer-nos de que quem escreve para tolos tem sempre grande público. Uma condição prévia para ler bons livros é não ler os maus: a nossa vida é curta."

[Arthur Schopenhauer]

Ps.1 Essa citação eu roubei lá no blog do Celso, cemgrauscelsius.blogspot.com, é muito legal, vão lá fazer uma visitinha.
Ps.2 A imagem eu afanei, vocês sabem onde...