21 dezembro, 2005


A ELOQÜENCIA DE UMA CARA NO ESPELHO
A realidade é um espelho; por trás desse espelho só tem a parede: é reflexo, é superfície pintada: nele Alice não entra, não penetra e não é penetrada conforme o seu intimo mais deseja. A verdade não reflete, não representa, não reproduz: ela não é um espelho, não é espelho de nada, se parece espelhar é só ilusão. A verdade é espelhamento, isto é, além de refletir o mundo circundante, como fantasmas em claro escuro, faz pressentir que algo se move por trás, algo vive e se agita além da nossa imagem e das imagens do mundo. A verdade não carece de explicações: elas são apenas um artifício para semi-esconder aquilo que se move do outro lado, ou aquilo que existe do outro lado. Alice atravessa o espelhamento que ali é chamado de espelho por falta de um outro nome. Mas o que se move atrás e além do espelhamento não é aquele mundo de Alice, não é um conto de fadas: o espelhamento não é atravessável: do outro lado podemos apenas pressentir existência, movimento, algo que escuta, algo que respira, algo que deseja e sonha: e esse algo, estranhamente, diz respeito intimamente a cada um que chegue perto.
Ps. Fala retirada do roteiro de um filme por fazer. A imagem foi docemente usurpada do bom e velho Getty Images

19 dezembro, 2005

AMADURECER APODRECE
Eu vi uma frase voando por aí, nem ruim nem boa, “O segredo da vida é escolher as comédias e esquecer os dramas”. Pois é, acho que ando escolhendo os dramas e esquecendo as comédias. Coisa assim, que nunca foi do meu feitio. Sei lá, ando levando a vida tão a sério, ando me levando tão a sério, nunca mais eu ri de mim. E olha que rir de mim é a minha especialidade. Mas então, ando pesando demais, argumentando demais, me cobrando demais. Ando me sentido aquela tartaruga que os indianos acreditam que carrega o mundo nas costas. Uma tartaruga velha, trilenar, vagarosa, uma tartaruga que só sabe pensar no que pensa, que anda se perdendo no mundo das idéias, que anda confundindo idéia com realidade. Se fosse confundir sonho com realidade seria bom, muito bom, seria loucura o que é bem melhor do que essa sanidade deformada. A Mulher me disse um dia, meio que por provocação, que eu era um “doente antropológico”. Reagi furioso com todo poder de argumentação que presumo ter e combati com gana a idéia de ter tal enfermidade. Vai ver sofro mesmo de excesso de sanidade e me aproprio agora da frase de um inimigo - é humilhante apropriar-se da frase de um inimigo, admitir o acerto de um desafeto, mas às vezes é inevitável – “O obvio é aquilo que está na ponta do seu nariz, mas mesmo assim você não consegue enxergar”. E é isso, mesmo pensando em tudo no mundo, mesmo carregando o mundo, sendo forte pelo mundo, mesmo pensando sobre pensar, não consegui enxergar que ando pensando demais e que isso me deixa muito cansado. Ficar velho só de pensar, ficar saudoso da meninice que tive ainda ontem, da inconseqüência gostosa que a gente sustenta na juventude. Logo eu, que sempre fui tão menino, ando homem demais pro meu gosto, levando tudo com a gravidade digna de meu pai. Logo ele que eu combati tanto pela capacidade de nunca sorrir de verdade, de nunca mostrar os dentes. Muito me assusta essa tal maturidade, esperada como uma dádiva e sentida como uma doença. Ando tendo inveja das irresponsabilidades dos outros, ando querendo aprontar das minhas e não sei mais se sou capaz. Até Tom Zé, o meu amigo mais menino (ele nem sabe que é meu amigo) andou me jogando isso na cara, numa música que fez um ano antes que eu finalmente nascesse, “... porque então essa mania danada, essa preocupação de falar tão sério, de parecer tão sério, de sorrir tão sério, de chorar tão sério, de brincar tão sério, de parecer tão sério, de amar tão sério, de sorrir tão sério... AH MEU DEUS DO CÉU, vai ser sério assim no inferno...” Pois é Zezé, acho que to sofrendo de “Complexo de Épico”, tô precisando assistir “Os Idiotas” de novo, de alguma cartilha hei de aprender. Tô precisando ler Miller de novo, tô precisando rir de Cortazar, to precisando usar bigodes de Dali, tô precisando apreciar os arroubos de Duchamp, tô precisando reaprender a comer banana só com os dentes de baixo.

13 dezembro, 2005



ALFORRIA DAS CORES
Dou-te uma caixa com 36 cores, da que tu sempre quisestes ou com 36 lápis azul-cobalto, que é do jeito que tu gostas. Dou-te até minha ausência de cor, meu cotoco de lápis preto preferido, que é pra fazeres as luzes, as sombras e as profundidades. Dou-te até o prazer inalienável de poder colorir do lado de fora das linhas pontilhadas.

Ps. Mais uma imagem subtraida do Getty Images e mais um gostinho do "Inexperiências Poéticas".

06 dezembro, 2005



[REFLEXO DE CARNE
(Ou, simpesmente, baseado em realidade)]


Céu de chumbo. Tietê. Perfume inconfundível de monóxido de carbono. Multidão de malas chegando, saudades, reencontros, olhos esperando. Depois de meses e milhares de quilômetros uma cara comum se ergue entre outras tantas caras comuns, tentando vislumbrar um rosto em particular. Horas, a face não aparece. Do meio de tudo que lhe pertence, saca tremulantemente um fragmento com nome e sete dígitos impressos a mão livre, chama...chama...chama... E o sorriso sofrido não lhe beija o ouvido. Sorve o fumo daquele ultimo trago e absorto tenta imaginar porquês inimagináveis.

Imóvel, pressiona os bens entre as pernas. Perfil colado no vidro do verme metroviário, assiste à corrida das luzes, espera chegar Liberdade. Esquece. Chega. Tropeça como um pirralho no fim da esteira rolante. Na primeira placa - enfeitada de kanji- paga a propina exigida para se ter um maço de cigarros.

Joga tudo o que tem sobre um sofá acolchoado com um pano que um dia já foi uma cortina. Rouba um sobretudo cor de carvão, não satisfaz a ninguém e caminha de cara pra cima, suspirando fumaça de frio. Pega a fila dos antigos porres, talvez por saudades da falta da lucidez ou quem sabe do excesso.

Dois olhos rasgados fitam-no incessantemente, ele olha a si mesmo, se aponta e as sobrancelhas que emolduram o olhar kamikase arqueiam-se. O estranho traduz um sim nos lábios de hemácia. Num gesto harmonicamente perfeito ela o chama para si, enlaça-o e sem palavra alguma toma sua boca, deixando-o todo inundando de um gosto agridoce.

Depois da enchente, inacreditavelmente, ouve as duas parcas sílabas de seu nome recitadas suavemente, pé do ouvido. Esconde o susto. Devolve a tormenta. Toma-a pelo braço e põe-se em fuga até encontrar a calmaria. E da bonança brota um tsunami.

Chega a vez das palavras, ele engole sofregamente o amargo do copo e de supetão derrama:

-- Sinto, mas não sou o cara que você pensa que eu sou.

Riso, riso histérico.

-- Tá me tirando?

Riso incontido.

-- Cê não existe cara...

Olhos baixos, fundo do copo.

-- Eu até existo, só não sou o cara que você pensa que eu sou.

Cessa o riso. Olho no olho, olhos puxados mais puxados ainda.

-- O que foi que cê tomou? Que merda é essa? Ta me tirando garoto?! Cê tá louco ou ta querendo me enlouquecer?

Riso cínico incontido, seguido de olhos envergonhados.

-- Me desculpa, mas é verdade. Posso até parecer com esse cara, ter o mesmo nome que ele, mas eu sou eu e não ele.

Rosto encolerizado.

-- PORRA! Isso não tem graça nenhuma! PARA! Para com isso agora!

Olhar inocente.

-- Eu sei que isso é difícil de acreditar, mas eu não sou ele e posso te provar.

Olhos descrentes, bilhete da Itapemirim, carteira de identidade, milhares de verbos, juramentos, argumentos, olhos fixos, mais provas, mais provas, olhos de dúvida, mais provas, documentos na mesa, mais desculpas, olhos rasgados de fúria, cinismo, a mão que intercepta o tapa ainda no ar, olho no olho, olho cínico de um lado, olho assassino do outro, um sorriso petulante num canto da boca e uma pergunta:

-- Gostou?

Colheu tempestade. Tomou-a pela mão, navegou sua carne, encharcou-se nas suas águas, naufragou no negro-azul dos seus cabelos, inundou cada cavidade, desfaleceu, acordou sozinho. E até hoje o cara comum morre de medo e de vontade de dar de cara com ele mesmo num beco escuro de cidade.

Ps. Mais um do "Inexperiêcias Poéticas".