23 agosto, 2006


OLHO DE GATO

Podia ter sido deixado na porta da Funabem ou duma casa de família ou até mesmo numa lata de lixo. Mas não, deixaram o pobre menino, recém nascido bem na frente de um Cabaré. Era uma terça-feira, dia de parco movimento. Duas putas deram com ele, dentro de um balaio enfeitado de fitas, enrolado numa colcha de retalhos. Elas eram Maria Pão Doce, a mais antiga da casa, e Zefa Tempero, que era a mais feia, mas trepava e cozinhava como ninguém.

- Zefa, pia Zefa! benzatideu...qui mininim bunitim, parece um anjim Zefa, oi us oim dele zefa, é azuzim e os cabelin Zefa, benzatideu, galeguim quinem buneca de mio. Ramo cria o bichim Zefa, bora...

- Mulé, tu é doidja é? Cuma é qui noi vai criar esse bunequim aqui no brega? Eu inda arrumuãs trepada aqui alí, mai tu num arruma nem pu sá...

- Mai Zefa, ele parece cum aquele anjim queu tirei, u utimo tu lemba? Eu sonhei cum ele chorano, mi pidino pa fica...

- Tu qui sabi Maria, tu qui sabe, eu vomimbora pá drento, queru nem vê... Mai oia...O bichim surrindo, tão bunitim mulé, dá pena mermo de dêxa assim, nesse frii danado. Tá bom Maria, tá bom, ô vô ti ajuda a cria esse minino...

Batizaram o menino Cícero, mas todos o chamavam de Ciço-Gato, graças aos olhos que mudavam de azuis pra verdes, dependendo do clima e do humor. Com Maria Pão Doce aprendeu a amar e a cantar; com Zefa Tempero aprendeu as artes da trepada, com os clientes aprendeu a ler, escrever, fumar, beber e a jogar cartas e capoeira. Aos 13 já era malandro feito, ostentando terno de linho branco, sandálias de rabicho bicolores e um coração tatuado no peito com os dizeres: “Amor só de Mãe”. Escrevia poesia, fumava charutos baianos e só bebia Campari, por gostar da cor e do gosto meio amargoso na boca. Aos 18 era amado por todas e temido por todos, nunca se embebedava ou perdia no jogo. Punia “xexêros” e gigolôs violentos riscando seu nome no peito deles com a ponta de uma faca peixeira.

A Rua Almirante Barroso, Zona do Baixo Meretrício de Caruaru, fervilhava naquela noite de sábado. Em todos os bordeis a fauna de boêmios e a flora de meretrizes nunca fora tão rica. Maria Pão Doce e Zefa Tempero, graças à sorte do filho, tinham agora seu próprio bordel. Ao qual, Cícero dera o nome de Pensão Coração de Mãe em homenagem as duas. E lá estava ele, sentado à mesa de sempre, rodeado pelas mais jovens da casa, tragando seu charuto, bebericando seu Campari, recitando poeminhas que acabara de escrever, quando entrou no recinto, meio aos tombos, um rapaz esguio, aparentando 18 anos, de sorriso sarcástico e olhar ferino. Vestia calças verdes, sapatos brancos e uma camisa vermelha aberta até quase o umbigo. Ainda cambaleante, passou um tempo observando o movimento da casa. Vez por outra passava um pente azul nos cabelos negros, untados com óleo de coco. Num ímpeto andou até o balcão, onde estava Maria Pão Doce servindo beberagens.


- Sô todasordi meu fio, vai querê bêbê uque? noi tem Pitu, cêuveja, cunhaqui de alcatrão, dreia, jurubeba, campari, uisqui...

Ele apontou para a garrafa de aguardente na prateleira. A velha prostituta aposentada pegou a Pitu de rolha e um copo americano, antes de terminar de enchê-lo foi surpreendida pelo rapaz que tomou o vasilhame de sua mão e bebeu, quase de um gole só, meio litro da bebida e depois gritou zombeteiramente:

- Cumigu num tem pirreps!

Maria Pão Doce dá uma gargalhada e diz:

- Eita sede da gota serena! Bebi mai digava meu fii, sinão a rola hoje num assobe nem pru cem e uma cocada!!! RARARARARARARA....

De sua mesa, Cícero observava tudo com atenção. Uma das garotas, Nilza Beiço de Sapoti, era Paraibana, de Campina Grande, e havia reconhecido o sujeito.


- Credincrui! valei-me nossa sinhora! É Agápio da Lagoa dos Canáro, o malfazejo mai instinto ruim da Serra da Burburema! Aí meu Frei Daminhão, hoje vai te disgracêra pruaqui, Ciço! Pulamôdedeu esse homi é o cão, Ciço! Us povo lá di Campina dii que certa feita ele entrô num cabaré cua veia e lascô ela no chão de rastêra pru cima da fia morta, pegô nos grão dum caba até ele si ajueiá e dizê cumigu num tem pirreps, deu im 8 sordado de puliça armado, matô um cabo e um cumiçaru. Depoi deu uma navaiada na lâmpida e se escafedeusse pela janela sem ninguém nem vê...

Aterrorizada, Nilza Beiço de Sapoti ainda segurava forte o braço de Cícero que continuva impassível. Ela observava que os olhos dele, que antes eram azuis, quase infantis, estavam verdes e profundos. Ele a cumprimentou com um meneio de cabeça, levantou-se e andou suavemente em direção do balcão.

Agápio, injuriado com a audácia de Maria Pão Doce, bebeu em mais um gole a outra “meiota” de Pitu e gritou mais uma vez:

- Cumigu num tem pirreps!

Maria Pão Doce mais uma vez escarneceu:

- Eita Mulesta! RARARARARARARARARA. O franguim de macumba ficô
foi brabo...

Os olhos de Agápio semi-serram-se e se injetam de sangue. Tal qual um corisco, ele quebrou a garrafa no balcão. Maria Pão Doce arregalou os olhos e congelou de medo. Agápio gritou novamente antes de deferir o golpe:

- Cumigo num tem pirreps!

Quando estava com o gargalo da garrafa a milímetros da garganta da mulher, Agápio sentiu um brusco repuxo em seu braço e virou-se rapidamente, já com a navalha aberta na outra mão. O salão do lugar estava vazio, todas as pessoas estavam recostadas nas paredes, exceto Cícero que estava bem diante dele com um sorriso inocente nos lábios e as mãos enfiadas nos bolsos do paletó. Olharam-se nos olhos por um tempo que pareceu incomensurável. Agápio, sem deixar de fitar o adversário, começou a gingar. Pela impressão de todos a bebedeira de Agápio curou-se automaticamente. Ele sutilmente descalçou-se, baixou a mão esquerda até o pé direito, sem tirar os olhos de Cícero, e afixou a navalha entre dedos. Executou uma meia-lua visando a garganta do oponente que se esquivou com facilidade sem tirar as mão dos bolsos. Logo em seguida emendou um martelo alagoano fúrioso.

TEBEI!

Depois do som da queda, um silencio estranho se fez e os presentes viram Cícero sentado sobre o abdome de Agápio, que gritava feito um torturado:

- NÃO! NÃO!!! NÃÃÃAAAAAAAAAAAAOOOOOOOO!!!

Cíço-Gato levantou, seus olhos estavam azuis, voltou tranqüilamente para mesa da qual viera, acendeu um charuto, bebeu do seu Campari, deu um beijo de língua em Nilza Beiço de Sapoti e sentou-se.

Quem teve coragem de se aproximar do malfazejo derrotado, que chorava feito um menino, pôde ver claramente, escrito em letras sangrentas: Com Ciço tu tens perhaps.

EPÍLOGO

Dizem que depois desse episódio nunca mais se soube do paradeiro de Agápio, O Terror da Lagoa dos Canários.

[Sob inspiração do conto A Cantoria que nunca foi ouvida, em Zé Limeira o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo(imagem de http://www.sxc.hu)]

5 comentários:

Anônimo disse...

faz um filme com esses 'episódios'. vai ficar irado.

sigo lenu.

raquel medeiros disse...

"Com Ciço tu tens perhaps". como diria Pozzobon, GENIAL!

a descrição das cenas, as personagens (inclusive os nomes) ficaram muito, mas muito foda mesmo. o nome(e a história por trás dele) do nosso anti-herói é perfeito.


põe issu num roteiro, minino!!!

beijos

Anônimo disse...

Dizem que Agápio ressuscitou e se transformou no terror da Torre, era conhecido como o fodão do Paú.
Pode perguntar pra Falcão se ele nao conhece AGAPE.

é mentira Téta?

celso muniz disse...

alex:o bb(bruno borges)matou a charada. acho que você atirou no que viu e acertou no que não viu. o que tá floreado em conto dá um roteiro de um curta, do tipo "super-trash-oito", com cara de cinema que sonhas fazer.
ou contigo tem perhaps?

Anônimo disse...

Cara, teu blog é porreta! Abraços.