27 agosto, 2006


BIX BEIDERBECKE

Sou panamenha e há tempos vivo com Bix. Escrevo e passo para a linha seguinte: ninguém irá acreditar; se acreditassem, seriam como eu e não conheço ninguém assim. Não exatamente eu, mas ao menos como eu. O que é uma vantagem porque dessa maneira posso escrever sem que me importe que leiam ou não, que ao final queime isto com o último fósforo do último cigarro, ou que o deixe abandonado na rua, ou que o dê para qualquer um, para que faça o que der na telha; tudo estará distante, tão distante de mim e de Bix.

Escrevo porque não há mais o que fazer e porque é certo ou parecerá certo para alguém que seja como eu. Existem, esbarro neles perto ou longe na vida. Nem todos vivem atados ao que lhes ensinaram. Veja, Rimbaud disse que se apaixonara por um porco e os professores dizem que era um grande poeta, o fazem provavelmente sem convicção, porque devem pensar assim para não parecerem idiotas. Porém, eu sei que era um grande poeta e Bix também o sabia, ainda que jamais tenha lido uma linha em francês e eu tinha que lhe traduzir Rimbaud, ao que ele colocava a mão na cabeça e ficava pensando, ou ia até o piano e começava a tocar essa coisa que agora se chama In a Mist e que era sua maneira de dizer que entendia a poesia francesa, porque entendia


bussy e como quase tudo lhe chegava pela música, essa era a única maneira de entender certas coisas, a vida, por exemplo, a ordem disso que chamo realidade e que ele entendia somente por dó maior ou fá sustenido, soprando docemente seu trompete ou indo ao piano para deixar nascer Lost in a fog, queimando os lábios com o cigarro esquecido pelas mãos, aranhas que teciam e teciam no teclado até que tudo acabava em um palavrão e num salto, eu sempre tinha por perto um tubo de creme para lhe curar os lábios; depois nos beijávamos sorrindo e ele voltava a xingar porque lhe doía e porque o trompete ia lhe doer ainda mais à noite, quando tivesse que tocar no Blue Room por oitenta dólares a apresentação.

“Vaocaralho”, como dizia tio Ramon, que juntava palavras e as fazia soar como uma chicotada na bunda; não que me custe escrever, porque como não me dou nenhum trabalho e esta máquina desliza, como o rum que já leva horas deslizando, tudo acontece em uma fita que vejo sozinha, não porque escreva às cegas, mas nem sequer olho para o papel, prefiro seguir meus dois dedos que saltam de cima pra baixo, a mão esquerda que corta a fita e passa para o outro tópico; tenho um abajur Tiffany que me enche o papel, o rosto e as mãos de manchas alaranjadas, verdes, azuis; escrever é como dançar música lenta com Bix no Phonix, ser parte de, ser parte de quê, ser parte disso que nos une a todos, sem que ninguém saiba que está junto e que somente esta noite estará com as outras partes, porque ainda que voltemos ao Phonix, já não será igual, como as ondas em Waikiki, uma atrás da outra após milhões de anos e nenhuma igual à outra; quem poderia dizer que uma onda contém o mesmo número de gotas de água que as outras ondas, ou o formato, ou a alegria, ou o desenho da crista, ou o jeito de quebrar nessa praia aonde Bix gostava de ficar dormindo e eu fumava para observá-lo, pequeno e feio, com aquele quê de alemão que havia grudado ao maldito sobrenome e em alguns gestos, herdados do pai ou dos tios; os Beiderbecke e suas árvores de Natal e os bolos perfumados da mãe de Bix, esses eruditos metidos até a alma em pleno Middle West, alemães com camisas de “cowboys”, falando americano e mais patriotas que o próprio Thomas Jefferson.

“Vaocaralho”, dizia tio Ramon, vaocaralho a Alemanha que nunca ouviu falar de Bix porque ele já era daqui; nunca entendi porque não trocava o sobrenome como fizeram outros músicos, Eddie Lang, por exemplo. Que eu me chamasse Macieira dava uma alegria enorme a Bix, lhe havia tirado do sério a coisa quando expliquei o que queria dizer, se contorcia em risos e depois me apertava contra ele e dizia Linda, Linda Macieira, Linda Macedo, Pé de Maçã, Deliciosa Torta de Maçã, no final, ficava com Torta de Maçã, e quase sempre depois disso começava a me comer porque nada lhe dava mais prazer que o doce de maçãs com cerveja, me chupava o nariz repetindo “Torta de Maça”, “Torta de Maça”, e eu lhe soprava em plena boca, e ele se jogava para trás maldizendo e me chamando de cretina, esculpindo a “Torta de Maça” que eu lhe havia deixado na boca, pobrezinho.

Conheci Bix na mesma época em que conheci Omar, na casa de meus paizinhos (escrevo paizinhos porque me faz sorrir, é cômico falar de paizinhos quando se pensa nesses escaravelhos peludos que me criaram entre freiras e me rachavam a chicotadas quando vinha aos domingos e esquecia um absorvente ao lado do vaso sanitário, asquerosa repugnante – mamãe –, é preciso ensinar o respeito a esta indecente – paizinho querido-), mas ao menos em casa havia a televisão e alguém que aos domingos poderia esperar sentada na sala, sabendo que Omar viria me ver; a família querida jogava dominó na sala de jantar e eu esperava sozinha a hora em que anunciavam Omar e eu ia escorregando na cadeira e esperava que, mais uma vez, Omar entrasse em primeiro plano e começasse a falar, a olhar-me, dissimulando um discurso qualquer, povo de Panamá, queridos amigos, qualquer coisa para aqueles que enchiam estádios e auditórios, porque o que ele queria era somente me olhar e tinha que dizer as piores baboseiras para que ninguém desse conta de que havia vindo à TV para observar-me, eu o esperava estirada no sofá, ele começava a falar, seus olhos de tigre verde me cravavam e eu lhe sorria, Omar, Omar, deixava ele me observar enquanto levantava a saia aos poucos, deixando-o ver-me, ia lhe mostrando tudo, pouco a pouco, sem pressa, porque Omar ia ficar meia hora dizendo baboseiras para os outros; mas eu havia inventado o código, a cada tantas palavras, escolhia as que Omar estava dizendo somente para mim enquanto me cravava seus olhos de tigre e lhe tremiam os músculos das têmporas, suas mãos que se erguiam como que para me alcançar, para fazer o que eu estava fazendo diante dele enquanto ele olhava e falava.

Pelo espelho era possível ver a porta da sala de jantar e saber em que momento teria que me endireitar, baixar a saia; Omar compreendia porque também podia ver pelo espelho da TV, às vezes meu pai, mais freqüentemente minha mãe, que vinha como que desconfiada; ou ambos, olhando e dizendo: esta menina, quem diria que ia se interessar tanto pela política, se me dissessem a irmã Filotea, mas não é bom nessa idade; “vaocaralho” dizia tio Ramon da sala de jantar, já largaram a partida novamente; com vocês não se pode jogar.

[Continua]



[O fragmento de conto acima, inacabado por Julio Cortázar, inédito em português, ganhou tradução de Cassiano Viana, que prepara uma biografia deste grande escritor argentino( e tudo isso afanei de http://www.paralelos.org)]

3 comentários:

raquel medeiros disse...

Julio Cortázar é um dos melhores. Contos, prosa, poesia, música. Era um cronópio inquieto e incansável.

Fico aqui curiosa e ansiosa pela biografia.

Um senhor achado esse conto. pena que inacabado, ou talvez, se tratando de Cortázar, não ter fim seja o melhor fim para este conto.

Mauricio disse...

Grande Ilustração do Cortázar

Anônimo disse...

Só para esclarecer, a biografia Cortázar está sendo escrita pelo Cassiano Viana e por mim, Susan Blum.
Quando estiver para sair venho avisar aqui!