06 dezembro, 2005



[REFLEXO DE CARNE
(Ou, simpesmente, baseado em realidade)]


Céu de chumbo. Tietê. Perfume inconfundível de monóxido de carbono. Multidão de malas chegando, saudades, reencontros, olhos esperando. Depois de meses e milhares de quilômetros uma cara comum se ergue entre outras tantas caras comuns, tentando vislumbrar um rosto em particular. Horas, a face não aparece. Do meio de tudo que lhe pertence, saca tremulantemente um fragmento com nome e sete dígitos impressos a mão livre, chama...chama...chama... E o sorriso sofrido não lhe beija o ouvido. Sorve o fumo daquele ultimo trago e absorto tenta imaginar porquês inimagináveis.

Imóvel, pressiona os bens entre as pernas. Perfil colado no vidro do verme metroviário, assiste à corrida das luzes, espera chegar Liberdade. Esquece. Chega. Tropeça como um pirralho no fim da esteira rolante. Na primeira placa - enfeitada de kanji- paga a propina exigida para se ter um maço de cigarros.

Joga tudo o que tem sobre um sofá acolchoado com um pano que um dia já foi uma cortina. Rouba um sobretudo cor de carvão, não satisfaz a ninguém e caminha de cara pra cima, suspirando fumaça de frio. Pega a fila dos antigos porres, talvez por saudades da falta da lucidez ou quem sabe do excesso.

Dois olhos rasgados fitam-no incessantemente, ele olha a si mesmo, se aponta e as sobrancelhas que emolduram o olhar kamikase arqueiam-se. O estranho traduz um sim nos lábios de hemácia. Num gesto harmonicamente perfeito ela o chama para si, enlaça-o e sem palavra alguma toma sua boca, deixando-o todo inundando de um gosto agridoce.

Depois da enchente, inacreditavelmente, ouve as duas parcas sílabas de seu nome recitadas suavemente, pé do ouvido. Esconde o susto. Devolve a tormenta. Toma-a pelo braço e põe-se em fuga até encontrar a calmaria. E da bonança brota um tsunami.

Chega a vez das palavras, ele engole sofregamente o amargo do copo e de supetão derrama:

-- Sinto, mas não sou o cara que você pensa que eu sou.

Riso, riso histérico.

-- Tá me tirando?

Riso incontido.

-- Cê não existe cara...

Olhos baixos, fundo do copo.

-- Eu até existo, só não sou o cara que você pensa que eu sou.

Cessa o riso. Olho no olho, olhos puxados mais puxados ainda.

-- O que foi que cê tomou? Que merda é essa? Ta me tirando garoto?! Cê tá louco ou ta querendo me enlouquecer?

Riso cínico incontido, seguido de olhos envergonhados.

-- Me desculpa, mas é verdade. Posso até parecer com esse cara, ter o mesmo nome que ele, mas eu sou eu e não ele.

Rosto encolerizado.

-- PORRA! Isso não tem graça nenhuma! PARA! Para com isso agora!

Olhar inocente.

-- Eu sei que isso é difícil de acreditar, mas eu não sou ele e posso te provar.

Olhos descrentes, bilhete da Itapemirim, carteira de identidade, milhares de verbos, juramentos, argumentos, olhos fixos, mais provas, mais provas, olhos de dúvida, mais provas, documentos na mesa, mais desculpas, olhos rasgados de fúria, cinismo, a mão que intercepta o tapa ainda no ar, olho no olho, olho cínico de um lado, olho assassino do outro, um sorriso petulante num canto da boca e uma pergunta:

-- Gostou?

Colheu tempestade. Tomou-a pela mão, navegou sua carne, encharcou-se nas suas águas, naufragou no negro-azul dos seus cabelos, inundou cada cavidade, desfaleceu, acordou sozinho. E até hoje o cara comum morre de medo e de vontade de dar de cara com ele mesmo num beco escuro de cidade.

Ps. Mais um do "Inexperiêcias Poéticas".

Um comentário:

Anônimo disse...

fala maluco! se rendeu então né? bonito.
e a eliza como tá? viciada em chá de trombeta, aposto. pilantra, nem divide com os amigos. xá comigo! ops. enfim.
abração bicho